"Um corpo sem alma é como um disco de vinil que não toca ..."

"O jornalista fere no peito o escritor. O escritor repele o jornalista, por esmagá-lo, por obrigá-lo a renascer quase sempre de um mesmo patamar. Feliz daquele que, nesse embate, consegue servir, e bem, aos seus dois senhores..."

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terça-feira, 7 de agosto de 2007

Cenas de um filme esquisito e real.

"... que não a primeira, que não aquela física, que não aquela superficial, que não aquela estética, era fóda. A segunda, aquela que o Oscar Wilde diz aí ao lado, preocupava. Bastante."

1. Externo. Rua da Esperança, esquina – dia.

Avistou de longe, na esquina, parado. A carrocinha cata-papel ao lado, estacionada. Roupas meio sujas, chinelo havaiana surrado, pés imundos, agora descalços; camiseta do Flamengo, década de 90. Uma raridade, cê precisa ver! Tinha ouvido falar do Zico e do Junior, mas não sabia quem eles foram. Lia as notícias da cidade. Lia, como se ler soubesse. E a carrocinha ao lado, quieta; o cachorro também, sem dar um pio, deitado à beira da sarjeta, com a língua de fora, a observar o movimento.

Passou um carro, passaram quatro, cinco. Passou a fome também, a pé, descalça e vendendo balinhas de goma. Uma delícia que só vendo. Puxou o cigarro e a caixinha de fósforos. Acendeu, ficou pitando como se cachimbo fosse; cuspiu de lado, resmungou.

2. Interno. Casa do Ramon Coraçãozinho – sala – dia.

Ouvia a TV dentro da casa em frente onde estacionara a ler o jornal, sentado na esquina, mas não a paranóia delirante. Dentro da casa alguém acabara de ser feliz. Um sonho realizara-se, concretizara-se. Quase nem acreditava e quase comia todos os amendoins dispostos na vasilinha à mesa de centro. O sonho real. Como era bom realizá-los; como era ruim acordar deles também. Já não havia mais coloridos e havia também, agora, coisas chatas dominando insistentemente a cabecinha. Nuns dois ou três dias antes comentara com as colegas. E agora já teria que mudar o discurso, caíra um tombo jogando. Dolorido. Nem sorrisos, nem pastéis de queijo; ouvia a Nico e sua bela voz de These Days. Nem tomara café. Passara um pedacinho que na verdade era um pedação da tarde deitado, tentando. Voltara melhor, mas ainda sem poder pensar que o sonho não era mais sonho. E agora (era o que restava e Ramon Coraçãozinho não sabia) contentar-se-ia com pães de queijo na fornalha e o Abbey Road ecoando pela casa vazia.

3. Meio longe dali – centro da cidade: Rua das Almas Felizes – noite.

Escureceu. Dois jovens forasteiros malabaristas brincavam com seus objetos, enquanto nos ônibus pessoas retornavam do ganha pão, ouviam uma nova bela canção. E o motorista só matutava chegar em casa e devorar a marmita. Depois de sobremesa, sua garota. Que maravilha de lingerie cor de sangue. Que maravilha de bunda e coxas grossas, roliças.

- Boa noite seu motorista!

Disse: Boa noite.

Voltou. Acelerou. O busão foi-se e os jovens malabaristas forasteiros (isso significa apenas que eles eram de outra cidade) continuaram lá, entretidos com bolas voadoras e claves que rodam bonito no ar. Um sujeito aproximou-se. Certamente nunca tinha escutado I want you (i want you so – she´s so heavy e por que não: she´s so heavy e sometimes cold?). Possivelmente. Estabeleceu diálogo. Outro sujeito também chegou. Também estabeleceu diálogo. Quis fazer malabares com bolinhas. Ficou umas meia hora jogando e toda hora caindo no chão. Deixou os forasteiros malabaristas encabulados. Mais encabulado ainda estava o Ramon do Coraçãozinho da outra estória, pensando em seus sonhos reais, que já não eram mais coloridos. Depois de cento e três tentativas mal-sucedidas, finalmente conseguiu fazer as bolinhas voarem. Passou um minuto. Saiu um pouquinho, caminhou, uns trinta e sete passos. Não pediu licença ao sair. O outro sujeito ficou lá, com dor no pescoço, incomodava. Passou uma ambulância, o sujeito foi lá ver. Voltou apressado para perto dos malabaristas forasteiros e perguntou:

- Sabe o sujeito que estava aqui tentando fazer malabares com bolinhas?
Balançaram a cabeça.
- tá lá estirado, sofreu perfuração lateral crônica que atingiu as costelas e o pulmão; a outra afetou artérias e o coraçãozinho. Usaram facas Quinzo. Vamos lá ver?
Balançaram a cabeça negativamente.
Ficaram de cara.

4. Sala. Som ligado, whisky com gelo – noite.

Refletia. Alegrara-se com a parte alegre da música You never give me your money. Nem desistiria e ainda teria algum tempo pela frente. Só desconfiava se isso era vantagem. Sabia que quando ingressava na segunda estância, que não a primeira, que não aquela física, que não aquela superficial, que não aquela estética, era fóda. A segunda, aquela que o Oscar Wilde diz aí ao lado, preocupava. Bastante. Agora, nesse momento, desejava que uma fã ensandecida entrasse pela janela do banheiro e dissesse coisas loucas como: voltei do leilão de abelhas e trouxe uma linda pra você! Quer ver?
Ou então lhe desse um ácido na mão de presente e depois fizesse crer que aquele sonho nem era tudo aquilo, embora soubesse que era tudo aquilo; que só queria ficar ali perto dela. Já bastava. É. Exatamente.

2 comentários:

Willians disse...

a culpa é da distancia ou do feromonio?

Samantha Abreu disse...

nossa... que delícia ler isso.
Me vieram um monte de idéias!
um beijo!